É com profundo pesar, ainda embargados pela dor da despedida, mas ao mesmo tempo reconhecendo toda a contribuição deste grande artista amazonense para a cultura popular brasileira e, mais especificamente, para toda a “nação beradeira”, que a Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET) vem expressar seus sentimentos e condolências a todos familiares, amigos e fãs que se despediram de Chico Cajú no dia 21.01.2022.

Rapaz, eu… 36… 50… Eu já gravei umas 100 músicas, a maioria minhas. Eu toquei em Porto Velho, Tabatinga, tudo por aí eu toquei, Manicoré, Tefé, Alvarães, rodei por esse Amazonas quase todo. Antigamente, naquele tempo, a gente entrava pra tocar nos festejos às oito horas e só parava às sete horas da manhã do outro dia, hoje a gente só toca duas, três horas.

Essas são apenas algumas palavras de Francisco Ferreira do Nascimento mais conhecido pelo grande público pelo nome artístico Chico Cajú registradas pelo pesquisador Rafael Norberto (quem vos escreve) no dia 08.07.2015, momento histórico em que a maioria dos músicos do “Beiradão” ou dos “beiradões” amazonense(s) com mais de 70 anos enfrentavam o esquecimento e o ostracismo por parte da grande mídia, das elites musicais e do poder público. No entanto, até o alcance de minha pesquisa de mestrado, dois músicos dessa geração continuavam animando as festividades ou festejos nas comunidades, aldeias, entre outras localidades espalhadas por todo o estado do Amazonas. Um desses músicos, uma das maiores resistências da cultura amazonense e amazônica como um todo, era ele, meu grande amigo, saudoso Cajú, como era carinhosamente conhecido entre os mais íntimos.

Chico Cajú nasceu no dia 03.10.1943 em uma localidade rural na beira do Lago do Ajará, município de Manaquiri, estado do Amazonas. Vindo de uma família de agricultores, cujo pai, mãe e os quatro filhos, incluindo ele próprio, foram acostumados a pegar no “cabo da enxada” desde muito cedo. Entretanto, tinha algo na família dos “Cajú” que os distinguia de outras famílias que partilhavam o convívio naquela comunidade, a música. Meu pai era tocador de violino, meus irmãos, um tocava banjo, o outro tocava pandeiro, o outro tocava bateria. A nossa bandinha era só irmão. Cajú iniciou a sua vida musical aos 12 anos de idade integrando a “bandinha” formada por ele, pelo pai e pelos irmãos. Ele tocava bateria, pandeiro e banjo revezando com os irmãos o ofício de acompanhar o pai nos festejos de santo e torneios de futebol que aconteciam nas diversas localidades próximas e, principalmente, no início de sua vida musical, na sede do Lago do Ajará.

Lembrava Cajú ao me contar a sua trajetória musical que aprendeu muito com o pai, porém, foi vendo os saxofonistas que iam de Manaus para o interior animar os bailes que ele se apaixonou pelo saxofone. Meu pai me deu um saxofone alto com 20 anos. Eu já tocava o soprano, aquele reto, Saraiva, mas foi com o alto que eu comecei a animar os festejos […]. O estudo… Era tudo de ouvido mesmo, eu tirava duas três músicas de um, duas três músicas de outro, e assim tinha repertório para varar a noite toda. Cajú menciona que ia pegando umas dicas com um e com outro saxofonista na comunidade onde vivia, porém, certo dia seu sogro mencionou que ele poderia ter mais chances de crescer como artista em Manaus. Cajú não pensou muito, foi para a capital aos 22 anos de idade. Trabalhou em diversos comércios no bairro Educandos, Morro da Liberdade e Compensa II, bairro em que residiu até os últimos dias de sua existência terrena; também montou um restaurante e conseguiu manter-se durante algum tempo, até que o dinheiro que passou a ser adquirido com o ofício da música foi conseguindo suprir suas necessidades. Nesse período, Cajú passou seis meses frequentando o Sexto Batalhão da Polícia Militar, local onde teve a oportunidade de pegar algumas dicas com saxofonistas respeitados em Manaus, inclusive alguns que havia visto tocar ainda pequeno no Lago do Ajará.

As portas do reconhecimento como artista amazonense se abriram através do radialista Zé Milton, que trabalhava na Rádio Difusora. No festejo de São Pedro em Manaquiri, o Zé Milton da Rádio Difusora foi para lá, aí, eu tava tocando, o dono da aparelhagem veio, falou comigo e disse: “Cajú, tu conhece o Zé Milton”, eu disse, não, “tá aqui ele, quer falar contigo”. Falei com ele e tudo, aí ele disse: “Cajú, você tem música sua mesmo?” Eu digo, tenho. “Então grava três músicas numa fita, que eu vou pra Fortaleza e passo lá em Belém, e vou falar com o Carlos Santo e entrego sua fita diretamente pra ele”. E foi assim que aconteceu, aí quando ele chegou ele disse: “pode esperar que o homem vai te chamar”.

Cajú gravou três LPs no estúdio Gravasom em Belém (PA), três CDs posteriormente em Manaus (AM), sendo A Volta do Sax (2013) o último álbum físico do artista, e ainda, mais recentemente, em parceria com músicos de gerações mais jovens do “Beiradão”, lançou em formato digital seu último álbum em 2020 (CD Chico Cajú Ao vivo – A lenda do Beiradão), gravado e produzido pelo maestro Dan Beiradão na terra natal de Cajú, município de Manaquiri. Os LPs gravados foram: Super Sax (1983), Chico Cajú e seu Super Sax (1985) e Fungando no Cangote Dela (1990). Ambos tiveram ótima aceitação e repercussão, principalmente nos estados do Amazonas e do Pará, além das localidades rurais nos interiores desses estados, que passaram a ser chamadas pelos músicos e radialistas manauaras de “beiradões”. Era nesses “beiradões” que Chico Cajú “ganhava a vida” tocando e animando os bailes durante os festejos de santo, torneios de futebol, aniversários de casamento, festas de 15 anos, entre diversas outras festividades que ocorrem nessas localidades.

Cajú seguiu compondo, gravando e animando os festejos amazonenses até os últimos dias de sua existência. Hoje, apesar do profundo pesar, também reconheço que, enquanto etnomusicólogo e, principalmente, Ser Humano, deixei a minha humilde contribuição para o legado deste grande artista, que graças a dezenas de iniciativas, teve o devido reconhecimento por parte das universidades (UEA e UFAM), das elites musicais, do grande público, de diferentes gerações de artistas e, até certo ponto, também, da grande mídia. Muitas pessoas somaram forças nos últimos anos para concretizar o sonho que iniciamos em 2015, quando conheci Cajú pessoalmente, de levá-lo a outros palcos manauaras e brasileiros, de realizar registros em documentários científicos e através de entrevistas jornalísticas para diferentes meios de comunicação, de reconhecer oficialmente seu legado artístico-cultural através de eventos nos espaços universitários e de trabalhos acadêmicos diversos, entre outras ações que realizamos. Não posso deixar de mencionar e agradecer aos estimados amigos e parceiros de empreitada, Eliberto Barroncas, Bernardo Mesquita, Rosivaldo Cordeiro, Rafael Angelo, Paulo Moura, Igor Marques e Hadail Mesquita, alguns dos agentes que produziram diversos materiais, desde composições e shows até matérias, artigos e documentários – que podem ser acessados nos links ao final desta nota –, entre outros que transformaram positivamente os últimos anos de vida deste grande artista.

É com um misto de tristeza pela despedida e serenidade pela sensação de dever cumprido que me despeço deste grande amigo! Que os saxofonistas do além te recebam com muita festa, Cajú, amado amigo!

Rafael Branquinho Abdala Norberto (Editor da Revista Música e Cultura), em nome de toda a diretoria da ABET, 22.01.2022.

Links para acesso de alguns dos materiais citados acima:

http://hdl.handle.net/10183/134934

https://www.anppom.com.br/congressos/index.php/26anppom/bh2016/paper/view/4452

https://www.abet.mus.br/portfolio/viii-encontro-nacional-da-abet-rio-de-janeiro-2017/

https://youtu.be/OHGqL_fRjUk

https://youtu.be/GVCKmnINiTI

https://youtu.be/nkiXVVnWwGU

https://youtu.be/6S-fVZ1AUDs

https://youtu.be/GH5BHBGsH8s

https://embrazado.com.br/2020/09/11/voce-ja-ouviu-falar-no-beiradao-conheca-a-historia-do-som-que-vem-do-amazonas/