No início de março de 2021, o Coletivo Mwanamuziki publicou uma nota de manifesto contra o racismo nos cursos de Música, que “expressa não apenas o grito das pessoas negras da área musical contra o racismo, mas também um documento de base para os debates e mudanças que se fazem urgentes no nosso meio”. De acordo com seus/suas integrantes, o Coletivo é 

“formado por pessoas negras pesquisadoras em música com o objetivo de atuar no combate aos racismos nos cursos de música do Brasil. Mwanamuziki é uma palavra do idioma africano Swahili (banto) que significa musicista independente do gênero.”

A Associação Brasileira de Etnomusicologia apoia o manifesto e buscará a sua divulgação nas mídias sociais da associação e também entre associações parceiras. Para a presidenta da ABET, profa. Dra. Marília Stein, a atuação do coletivo e manifesto correspondente

“[…] ajudará a seguirmos discutindo a descolonização de nossos currículos em música e – lê-lo, relê-lo e compartilhá-lo – nos fará ver com ampliada criticidade as dinâmicas e os horizontes de nossas implicações enquanto etnomusicólogas e etnomusicólogos no enfrentamento do racismo e na proposição de estratégias para a efetiva implementação da educação das relações étnico-raciais no Brasil.
Trata-se de um documento profundo, denso e orientador, para a luta contra o racismo em todos os âmbitos da sociedade, em especial nas diferentes esferas das práticas musicais institucionalizadas e das representações associativas.”
Confira o manifesto, na íntegra: 
 MANIFESTO DAS PESSOAS NEGRAS CONTRA O RACISMO NOS CURSOS DE MÚSICA
A luta negra no Brasil e no mundo é uma luta por justiça e reparação histórica. Nós pessoas negras – estudantes, docentes, compositoras/es, performers, pesquisadoras/es, pesquisadas/os – nos posicionamos publicamente contra o racismo institucional, estrutural e individual que historicamente estabelece, estrutura e mantém os cursos de música no Brasil sob o domínio de uma suposta excelência branca que resulta em posturas supremacistas e que impedem a entrada de pessoas negras em postos de maior prestígio no campo acadêmico musical. Também dificulta a inserção de epistemologias musicais produzidas por pessoas negras nas universidades ou fora delas. Essa realidade, que atravessou o colonialismo e se sustenta na colonialidade, coloca as pessoas negras em uma perversa condição de desvantagem em relação às pessoas brancas e não negras da área musical.
Após mais de uma década da implementação das políticas de ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras notamos alguns avanços, porém, percebemos que temos muito a caminhar.
As políticas de cotas possibilitaram o aumento da entrada de estudantes negras/os ao longo destes anos, mas ainda existe uma demanda por permanência desses corpos negros nas universidades do Brasil. Além disso, as políticas de ingresso têm sido, por muitas vezes, sabotadas pelo racismo nas suas diversas formas – estrutural, institucional e individual, o que corrobora para o exercício da desigualdade social que assola a vida das pessoas negras.
Mesmo diante do aumento de pessoas negras formadas nas graduações e pós-graduações em música, notadamente, não houve uma transformação na configuração dos corpos docentes dos cursos de música, que permanecem majoritariamente formados por profissionais brancas/os e não negras/os.
Outrossim, as políticas afirmativas possibilitaram discussões sobre relações étnico-raciais, porém, não trouxeram para os currículos de música, de maneira efetiva, as epistemologias, metodologias e visões de mundo produzidas pelas populações negras. Em vista desta realidade, e para além da implementação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010); de Ações Afirmativas em todos os programas de Graduação (Lei 12.711/2012); e Pós-Graduação (Portaria Normativa 13/2016); e Aplicação das Leis de Cotas no Serviço Público (Lei 12.990/2014); Nós Pessoas Negras da área musical nos manifestamos contra as diversas formas de racismo nesse campo e reivindicamos
1. A criação de um campo transversal de estudos da Música Negra Brasileira, afro-diaspórica e africana nos cursos de formação profissional e técnica, graduação e pós-graduação em música. Com investimento no desenvolvimento de um quadro teórico, epistemológico, artístico, prático para o avanço da etnomusicologia negra, musicologia negra, educação musical negra, composição negra, práticas interpretativas negras, entre outros subcampos que existem ou que venham a existir.
2. A inclusão de repertórios de compositoras/es negras/os nas práticas de conjunto dos cursos de música;
3. A implantação de projetos de extensão direcionados a estudantes negras/os com objetivo de contribuir, entre outros aspectos, para sua entrada nos cursos superiores de música; E projetos de iniciação científica com objetivo de contribuir, entre outros aspectos, para aentrada de pessoas negras nos cursos de pós-graduação em música;
4. A aplicação da lei de cotas para pessoas negras nas orquestras e demais conjuntos musicais das instituições públicas;
5. A aplicação da lei de cotas nos festivais e masterclasses realizados em instituições públicas, incluindo uma revisão nos critérios de inscrição que envolvem limite de idade, considerando que muitas/os jovens negras/os levam mais tempo integralizar a formação;
6. A presença de docentes e estudantes negras/os nas comissões de formulação e reformulação dos currículos dos cursos de música, nos diversos níveis;
7. A presença de docentes negras/os em comissões de concursos, em bancas de TCC, mestrado e doutorado;
8. A inclusão de saberes acadêmicos produzidos pela intelectualidade negra nos editais de concursos, tanto nas referências bibliográficas quanto nos pontos a serem trabalhados nas provas;
9. O fortalecimento e reformulação das políticas de permanência nos cursos de música das universidades públicas, incluindo a aquisição de instrumentos musicais para empréstimo e disponibilização de verba para manutenção;
10. O apoio à criação de coletivos negros formados por alunas/os e ex-alunas/os dos departamentos de música das diferentes áreas, como espaço de interlocução e proposição de ações com vista a dar visibilidade, equidade aos saberes, pesquisas e trabalhos artísticos desenvolvidos pelos corpos discentes negros dos cursos de música.
O combate aos racismos na música demanda o apoio, o compromisso e a mobilização de pessoas e lideranças antirracistas da área. O combate aos racismos na área da música pressupõe
  • Que cada estudante, docente e pesquisadora/or negra/o seja valorizada/o pela sua contribuição, pensamento, experiência pessoal e prática nos estudos em música desde que esteja alinhado com a luta antirracista, com o legado do pensamento político, social, cultural, filosófico, econômico e musical negro afro-diaspórico e africano; levando em consideração o legado das mulheres negras e sua produção de conhecimento em vastos campos e áreas de conhecimento;
  • Que a produção acadêmica negra, em alguma dimensão, reflita criticamente sobre o impacto do racismo, do sexismo, do machismo, das estruturas de opressão e dominação que afetam a comunidade negra local e global;
  • Que a produção acadêmica negra (artigos, dissertações, teses e demais textos) demonstre e desconstrua a cumplicidade histórica dos estudos em música com as estruturas hegemônicas euro-americanas centradas, nas diferentes subáreas, com vista a proporcionar mudanças no conhecimento científico da área musical, de forma a não deixar o contexto atual como dado, uma vez que a luta negra reflete décadas de história e organização contra a opressão;
  • Que a produção acadêmica negra incorpore os saberes e os conhecimentos musicais das comunidades negras rurais, urbanas e quilombolas, com vista a pluralizar o currículo de música com base na Lei 10639/03 e na Lei Nº 11.645/08;
  • Que se identifiquem as causas e efeitos de opressão acadêmica às/aos estudantes negras/os e como isso afeta as suas vidas e suas produções intelectuais e acadêmicas;
  • Que haja mudança na perspectiva do ensino de música, deixando de ser um ajustamento de pessoas negras aos estudos de música, para tornar-se um ensino de empoderamento do legado cultural, musical, artístico e performativo negro;
  • Que haja um entendimento de música como algo muito mais complexo do que a arte de combinar os sons, entendendo a música como um lugar da memória e pela memória, bem como um fenômeno revelador dos modos de vida das pessoas negras, suas escolhas, potenciais, críticas, ambiguidades, conflitos sob a hegemonia de um sistema capitalista;
  • Que haja mudança na perspectiva do ensino de música, deixando de ser um treinamento prático individualizado, para se transformar em troca de saberes compartilhados entre estudantes negras/os e não negras/os de diferentes áreas, levando em conta as necessidades e dinâmicas do campo de estudo em música;
  • Que haja a proposição de um cardápio de alternativas epistemológicas inclusivas, democráticas e afirmativas, baseadas nas africanidades, nos valores civilizatórios afro-brasileiros, tendo como referência os congressos, fóruns e encontros de pesquisadoras/es negras/os bem como o trabalho dos movimentos sociais negros e seus coletivos;
  • Que se exija a aplicação das leis de cotas no serviço público, nas universidades e nos espaços de poder, com implementação de políticas de permanência que auxiliem a geração atual e as próximas nos estudos de música no Brasil, com vista a uma transformação social.